Nosso meio cultural, embora tenha fortes marcas de miscigenação, não nos dá plenas oportunidades de entrarmos em contato com instituições ou costumes indígenas ou africanos. Sabe-se que essas instituições fazem parte do tecido social do Brasil, mas nem sempre desabrocham em
práticas sociais respeitadas. Mais facilmente ocupam o nicho do folguedo ou das formas descompromissadas, e às vezes sendo as mais amadas, são motivo de vergonha e feitas às escondidas na porta dos fundos, pois a entrada social é reservada a algo mais prestigiado socialmente.
Temos um dia nacional do índio festivo e colorido, quando as ruas ficam cheias de crianças de rosto pintado e penacho de cartolina, mas não conhecemos muito bem os dramas que envolvem a
demarcação das terras indígenas. E vai por aí afora. A riqueza pujante de nossas tradições pinga em fragmentos na ficção escrita e falada, nas festas escolares, nas comemorações cívicas. Não estão de todo esquecidas, posto que ainda existem grupos de quadrilhas, pagode, samba, reisados, jongos , lundus etc. Porém sobrevivem amealhando recursos e são considerados manifestações culturais de segunda categoria.
Em 13 de maio de 1888 a princesa Isabel assinou a lei áurea. Segundo a versão oficial da história do Brasil esta lei "libertou" os escravos. "Libertou" não é bem a palavra, pois liberdade implica numa série de quesitos que nem sequer foram cogitados para os escravos: onde iriam morar? trabalhar? o que comeriam?estudariam? Nenhuma destas medidas fez parte do "projeto de libertação". Os escravos
foram da senzala para a favela. Mesmo com todas estas ressalvas a data de 13 de maio ficou como um marco comemorativo entendido como uma mudança na condição de escravo.Ficou sendo uma data cívica.
A Umbanda, uma das religiões que fazem culto dos Orixás, tomou a data acima para fazer um ritual de vivência e reflexão sobre a escravidão propriamente dita e sobre todas as formas de ignorância e poder que nós seres humanos, exercemos uns sobre os outros. É um ritual bem abrangente, na verdade.
O tema escravidão suscita um conjunto enorme de questões que merecem reflexão: O respeito à vida, a experiência do encarne, amor e ódio, vingança e perdão, as diversas formas de exclusão. É além disso, um momento de resgate da nossa memória cultural.
O ritual consiste no preparo e degustação da feijoada. A presença da feijoada justifica-se porque ela era nada mais nada menos que a refeição básica e substancial dos escravos no Brasil colonial. Normalmente a feijoada é preparada para muitas pessoas. Enche-se uma grande panela de feijão onde também serão cozidos o paio, o toucinho, a carne seca e outros miúdos. Este prato não é assim por acaso. Sua feição é estreitamente ligada a maneira como surgiu. A maior parte dos animais abatidos para alimentação permanecia na cozinha da casa grande. Para a senzala eram enviados os pedaços que não interessavam aos senhores. Eis aí curta e breve a história da feijoada.
Neste ritual prepara-se uma grande quantidade de feijoada para ser compartilhada pela
comunidade. O comer ritualístico diferencia-se do comer apenas para saciar a fome. A atitude ritualística requer considerável grau de atenção e intenção. Não é uma questão de alimentar o corpo, mas o ser
integral. A atitude devocional já começa pela maneira de arrumar a mesa e servir a comida. Forra-se uma extensa toalha de renda no chão,sobre esteiras em frente ao gongá (altar). Sobre esta toalha deposita-se as grandes panelas de feijão, de arroz, a couve, a laranja, os pratos. Algumas pessoas sentam-se ao longo da esteira e vão arrumando as refeições. Outras ficam na distribuição. Muitos médiuns ficam sentados em banquinhos incorporando as entidades pretos velhos ( entidades de Umbanda, que segundo nossa crença, trazem a sabedoria dos escravos desencarnados). Depois todos oramos em agradecimento e comemos com as mãos para reafirmar a origem do ritual.
Num destes rituais cuja finalidade é curar o mais possível nossa identidade ferida, descaracterizada e marginalizada vivi um momento ímpar em emoção, surpresa e encantamento. Se já é um ritual bonito e profundo neste dia ficou mais bonito ainda porque um grupo de índios Kaiapós participou.
Depois que a mesa foi arriada eles dançaram e cantaram em volta dela. A dança era para agradecer a Deus a abundância, a oportunidade de estarmos juntos e a vida de um modo geral.
Éramos mais ou menos cem pessoas. Aquele clima provocado pela fé e pela reverência foi muito rico. Foi um ritual fortíssimo, a emoção estava intensa, a presença dos índios e dos escravos (em espírito) trouxe de volta os sentimentos genuínos e indestrutíveis. Eram séculos e séculos de vivência nesta terra.
Um pedaço da nossa história, sem teses, sem pontos de vista teóricos ou interpretações . Não era o caso de uma intermediação intelectual. Ali estava o sentimento de quem viveu na própria pele dor, desespero, medo, perda, tristeza, conquista, alegria e mais uma infinidade de experiências. As vivências puras, sem palavras. Na medida que os cânticos e as danças sucediam-se e os índios batiam com os pés ritmadamente, parecia que ia brotando do chão uma história viva jamais contada por nenhum livro, por nenhum historiador. Era a vida em estado puro de todas aquelas pessoas ali e suas gerações passadas.Era o barulho dos pés marcando um belo ritmo e a emoção subindo e se intensificando sem parar até a atmosfera ficar plena de tanta vida e emoção. História que só a voz da alma pode contar.
Daí comecei a pensar em como é fácil o equívoco para a frágil condição humana. Estamos tão perto do erro que a queda pode ser brutal quando se é invigilante. O fenômeno do genocídio me deixava assim conversando com meus botões. Como certos grupos fortes social e economicamente atiram-se sobre etnias desprotegidas para roubar e escravizar! Quanta violência, depredação e morte! Depois de dizimar populações e aldeias o grupo invasor sai se gabando de suas conquistas achando que destruíram as incômodas pessoas e os inúteis costumes "primitivos" e implantaram de vez seu credo, sua cultura, sua visão de mundo. Ledo engano. Quando menos se espera, em qualquer lugar, qualquer momento, a história de uma etnia pode arrebentar do chão com uma força inesperada, incontida e muito incisiva, nos advertindo para não cair na tolice de tentar destruir o que é sublime e divino. Esse divino pode se esconder temporariamente nos corações magoados que aprenderam a proteger seus segredos mais caros. Mas sendo divino conserva seu frescor e sua força que podem vir á tona com uma beleza e uma riqueza tão grandes que provam que na verdade, sobreviveram intactos. E os pretensos conquistadores mal conseguem disfarçar as mãos sujas de sangue.
Foto: Jonathan Hardeman
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