Andava meio sem idéia para fazer post e cismei que tinha que acabar com a preguiça hoje. Pensei em várias alternativas, mas cada qual me parecia mais inadequada.
Desisti do post e fui ler sobre astrologia. Li descrições referentes a Plutão, Vênus, Leão na casa V, quadraturas de Saturno etc. Precisei anotar algo sobre associação de Marte com Vênus e fui até a caixa de papéis de rascunho. Alguma conjuntura astral me favoreceu, pois o verso do papel de rascunho trazia um trecho de Morte e vida severina. É o momento em que nasce o filho de Severino retirante. Mesmo que a criança tenha nascido em meio a grande miséria, seu nascimento é saudado, senão com alegria, pelo menos com a consciência de que toda vida é para ser reverenciada. Cada manifestação de vida tem que ser respeitada e acolhida, ainda que surja nos ambientes mais hostis, dolorosos ou nada conVIDAtivos.
Mais uma vez a fórmula do acaso socorreu-me. O poema detonou minha preguiça e estimulou a vontade de escrever. Amo em João Cabral, sua grande habilidade de explorar a palavra para extrair dela o máximo de ritmo, sonoridade e sensação. Sabendo que toda a obra de João Cabral é magistral, tenho uma grande admiração por Vida e morte Severina. A saga de Severino retirante tem muito da pureza e da força da terra condensadas em suas palavras. Relato pungente de quanta dor habita o solo brasileiro, com sua gente abandonada à própria sorte.
No papel de rascunho, a passagem em que os vizinhos falam sobre a beleza do recém-nascido, que não sendo qualidade marcante naquele indivíduo, é inerente ao que este rebento nascido da dor e da fome, significa para a vida. Já vi montes de imagens e comparações expressando a beleza. Quase sempre estas imagens usam símbolos de grandiosidade, distinção ou qualquer coisa que seja primordialmente belo. Mas como falar da beleza que persiste na feiúra? A situação não pedia imagens grandiosas, pois não se tratava de uma beleza ostensiva.Só mesmo a sensibilidade e a alma para ver a beleza se insinuando através da estreita abertura no corpo da miséria. Então pronto, caderno novo. A simplicidade e a novidade. Serviu como uma luva. Todo mundo já experimentou isto.Quanta promessa! Letrinha caprichada na primeira página acreditando que será assim até o final. Ainda que a bagunça já comece na terceira página, a primeira é sempre um projeto, um momento de renovação, a partida. Desta vez tudo vai dar certo. Um novo curso, novo aprendizado, uma nova casa, obras na velha casa, novo carro, novo amor. É qualquer coisa nova que um ou dois meses após poderá ter se perdido na confusão do cotidiano. Mas a sensação da primeira página é realmente muito gostosa.
Desde que li este poema pela primeira vez, há muitos anos atrás, esta imagem do caderno novo ficou praticamente carimbada na minha memória. Acho que gosto de cadernos.
De uma coisa estou certa. O que eu não consegui expressar, os versos falarão por si:
"___De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.
___De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
___É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
___Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas
___Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
___É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.
___Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
___Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
___Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia
___Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
___É belo porque com o novo
todo o velho contagia.
___Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
Vida e morte severina (fragmento)
João cabral de Melo Neto
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