Rua estreita. Gente, gente. Gente passando. Indo e vindo. Quase ouço o barulho dos pés pisando os paralelepípedos lustrosos que as pequenas botinas, (às vezes, vindas de Paris) das mulheres tornam a lustrar com seus saltos saltitantes. Botinas e sapatos mais pesados de couro de boi do sertão do Rio de Janeiro, ou trabalhados nas oficinas dos sapateiros europeus. Neste caso, devemos pressupor que os sapatos tenham ornamentos e polainas.
Transversa Uruguaiana acolhe as saias, babados, rendas que passeiam rente ao chão. O cheiro dos morros já fazia parte dos aromas da cidade. Cheiro de cana, café e suor misturados ao silêncio das pedras e ao murmúrio do mar.
Rio, cidade batizada pelo trânsito. O trânsito do Rio nem sempre é fluido. Porém, nos romances de Machado de Assis tudo flui. As palavras, as frases, os períodos. Como um rio profundo evidentemente. Profundidade sem covas sombrias. Leito de rio perfeito, cabendo em si suas águas; de reflexão, de elegância. Rio que flui prazerosamente e distribui generosamente seu prazer.
Genialidade, inteligência, crítica, precisão: inúmeros predicados. Material para uma biblioteca de crítica literária. Sem dúvida, se alguém quer buscar ou crescer, pode treinar seus dons de crítico literário nos textos de Machado. Eu vou como leitora. Leitora de rede. Rede de árvore de sítio, com o silêncio por ajuda. Contando também com os barulhinhos da natureza. Prazer de mergulhar, de esquecer do mundo submersa nas páginas de Machado. Saborear cada palavra que parece nascida ali. Cada frase. Ouvir e sentir o escrito. Tato da alma, audição do coração. O texto de Machado de Assis homenageia a língua portuguesa porque a respeita e a ama. Cuida dela como se cada palavra fosse uma pedra preciosa no conjunto de uma jóia rara. É assim que a língua também acolhe Machado, como o amante ou o filho mais querido. Estes dois entes, isso sim é que é o melhor, convidam quieta e calorosamente o leitor a participar de um mundo especial, desta ceia que oferece beleza, elegância, idéias, metáforas, estilo e muito mais. Infindo, indefinido.
A porta está aberta. Quem quiser pode entrar. Limpe os pés no capacho da porta. Faça silêncio. Cuidado com os tapetes internos pois eles são simples, mas valiosos na moeda sinceridade. Sente-se ou deite-se, pois há cadeiras e sofás. Prove, saboreie, viva.
fragmento do conto "Primas de Sapucaia!"
de Machado de Assis
"Ao chegar à porta de casa, consultei o relógio, como se tivesse alguma coisa que fazer; depois disse às primas que subissem e fossem almoçando. Corri à Rua da Misericórdia. Fui primeiro até à Escola de Medicina; depois voltei e vim até à Câmara dos Deputados, então mais devagar, esperando vê-la chegar a cada curva da rua; mas nem sombra. Era insensato, não era? Todavia, ainda subi outra vez a rua, porque adverti que, a pé e devagar, mal teria tempo de ir em meio da praia de Santa Luzia, se acaso não parara antes; e aí fui, rua acima e praia fora, até ao convento da Ajuda. Não encontrei nada, coisa nenhuma. Nem por isso perdi as esperanças; arrepiei caminho e vim, a passo lento ou apressado, conforme se me afigurava que era possível apanhá-la adiante, ou dar tempo a que saísse de alguma parte. Desde que a minha imaginação reproduzia a dama, todo eu sentia um abalo, como se realmente tivesse de vê-la daí a alguns minutos. Compreendi a emoção dos doidos."
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