domingo, 18 de dezembro de 2011

História viva

                   Nosso meio cultural, embora tenha fortes marcas de  miscigenação,  não nos dá plenas oportunidades de entrarmos em contato  com instituições  ou costumes  indígenas ou africanos. Sabe-se que essas  instituições fazem parte do tecido social  do Brasil, mas nem sempre desabrocham em
 práticas sociais  respeitadas.  Mais facilmente ocupam o nicho  do folguedo  ou das formas descompromissadas, e às vezes  sendo as mais amadas, são motivo de vergonha e feitas às escondidas na porta dos fundos, pois a entrada social  é reservada a algo mais prestigiado socialmente.
                   Temos um dia nacional do índio festivo e colorido, quando as ruas  ficam cheias de crianças de rosto pintado e penacho  de cartolina, mas não conhecemos  muito bem os dramas  que envolvem  a
demarcação das  terras indígenas. E vai por aí afora. A riqueza pujante de nossas  tradições pinga em fragmentos  na  ficção escrita e falada, nas festas escolares, nas comemorações cívicas. Não estão de todo esquecidas, posto que  ainda existem grupos de quadrilhas,  pagode,  samba,  reisados, jongos , lundus etc. Porém sobrevivem  amealhando  recursos e são considerados manifestações culturais de segunda categoria.
                   Em 13 de maio de 1888 a princesa  Isabel assinou  a  lei áurea. Segundo a versão oficial da história do Brasil esta lei  "libertou" os escravos.  "Libertou"  não  é  bem  a  palavra, pois liberdade implica  numa série de quesitos que nem sequer foram cogitados para os escravos: onde iriam  morar? trabalhar? o que comeriam?estudariam? Nenhuma destas medidas  fez parte do  "projeto de libertação". Os escravos
foram  da senzala  para a favela. Mesmo com todas estas ressalvas a data de 13 de maio ficou como um marco comemorativo entendido  como uma mudança  na  condição de escravo.Ficou sendo uma data cívica.
                  A Umbanda, uma das religiões  que fazem culto dos  Orixás, tomou a data acima para fazer um ritual de vivência e reflexão sobre a escravidão propriamente dita  e sobre  todas as formas de ignorância e poder que nós seres humanos,  exercemos uns sobre os outros. É um ritual bem abrangente, na verdade.
  O tema  escravidão suscita um conjunto enorme  de questões que merecem reflexão: O respeito à vida, a experiência do encarne, amor e ódio, vingança e perdão, as diversas formas de exclusão. É além disso, um momento de resgate da nossa memória cultural.
                 O ritual consiste  no preparo e degustação  da  feijoada. A presença  da feijoada justifica-se porque ela era nada mais nada menos que a refeição básica e substancial dos escravos no Brasil colonial. Normalmente a feijoada é preparada para muitas pessoas.  Enche-se uma grande panela de feijão onde também serão cozidos o paio, o toucinho, a carne seca e outros miúdos. Este prato não é assim por acaso. Sua feição é estreitamente ligada a maneira como surgiu. A maior parte dos animais abatidos  para alimentação permanecia na cozinha da casa grande. Para a senzala eram enviados os pedaços que não interessavam aos senhores. Eis aí curta e breve a história da feijoada.
                  Neste ritual prepara-se uma grande quantidade de feijoada para  ser compartilhada  pela
   comunidade. O comer ritualístico diferencia-se  do comer apenas para saciar a fome. A atitude ritualística  requer  considerável  grau de atenção e  intenção.  Não é  uma questão de alimentar  o corpo, mas o ser
 integral. A atitude devocional já começa pela maneira  de arrumar a mesa e servir a comida.  Forra-se uma extensa  toalha de renda no chão,sobre esteiras  em frente ao gongá (altar). Sobre esta toalha deposita-se as  grandes panelas  de feijão, de arroz, a couve, a laranja, os pratos. Algumas pessoas sentam-se ao longo da esteira e vão arrumando as refeições. Outras ficam na distribuição. Muitos médiuns ficam  sentados em banquinhos  incorporando  as entidades  pretos velhos ( entidades de Umbanda, que segundo nossa crença, trazem a sabedoria dos  escravos desencarnados). Depois todos oramos em agradecimento e comemos  com as mãos para  reafirmar a origem do ritual.
                Num destes rituais cuja finalidade é curar o mais possível  nossa identidade ferida, descaracterizada e marginalizada vivi um momento  ímpar em emoção, surpresa e encantamento. Se já é um ritual bonito e profundo neste dia ficou mais bonito ainda porque um grupo de índios Kaiapós participou.
  Depois que a mesa foi arriada eles dançaram  e cantaram  em volta dela. A dança era  para  agradecer  a Deus a abundância,  a oportunidade de estarmos juntos  e  a vida de um modo geral.
               Éramos  mais ou menos cem pessoas. Aquele clima provocado  pela fé e  pela reverência  foi muito rico. Foi um ritual fortíssimo, a emoção estava intensa, a presença  dos índios e dos  escravos  (em espírito) trouxe de volta os sentimentos  genuínos e indestrutíveis. Eram séculos e séculos de vivência nesta terra.

Um pedaço da nossa  história, sem teses, sem pontos de vista teóricos ou  interpretações . Não era o caso de uma intermediação intelectual. Ali estava o sentimento de quem viveu  na  própria  pele  dor,  desespero,  medo,  perda, tristeza,  conquista, alegria e mais uma infinidade de experiências. As vivências puras, sem palavras.  Na medida  que os cânticos  e as danças  sucediam-se  e os índios  batiam  com os pés   ritmadamente, parecia  que ia  brotando do chão uma história viva jamais contada por nenhum livro, por nenhum historiador.  Era a vida em estado puro  de todas aquelas pessoas  ali e suas gerações passadas.Era o barulho  dos pés  marcando um belo ritmo e a emoção subindo  e se intensificando  sem parar até a atmosfera ficar plena de tanta vida e emoção. História  que só a voz da alma pode contar.

             

           Daí  comecei a pensar  em como é fácil  o equívoco para a frágil condição humana. Estamos tão perto  do erro   que a queda pode ser brutal quando se é invigilante. O fenômeno do genocídio  me deixava assim conversando com meus botões. Como certos grupos  fortes social e economicamente atiram-se sobre  etnias desprotegidas  para  roubar e escravizar! Quanta violência, depredação e morte! Depois de dizimar populações e aldeias o grupo invasor sai se gabando de suas conquistas  achando que destruíram  as incômodas pessoas  e os inúteis  costumes "primitivos" e implantaram de vez  seu credo,  sua cultura, sua visão de mundo. Ledo engano. Quando menos se espera, em qualquer lugar, qualquer momento,  a história de uma etnia  pode arrebentar  do chão  com uma força inesperada, incontida e muito incisiva, nos advertindo  para não cair na tolice de tentar destruir  o que é sublime  e divino. Esse divino pode se esconder temporariamente  nos corações magoados  que aprenderam  a proteger seus segredos mais caros. Mas  sendo divino  conserva seu frescor  e sua força  que podem  vir á tona com  uma  beleza  e uma riqueza tão grandes que provam  que na verdade, sobreviveram intactos. E os pretensos  conquistadores  mal conseguem  disfarçar  as mãos sujas de sangue.


Foto: Jonathan Hardeman
www.flickr.com/photos/jonhardeman
www.myspace.com/jonhardeman

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