sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Belo como um caderno novo

                  Andava meio sem idéia para fazer post e cismei que tinha que acabar  com a preguiça hoje. Pensei em várias alternativas,  mas cada  qual me parecia  mais inadequada.

                  Desisti do post e fui ler sobre astrologia. Li descrições  referentes a Plutão, Vênus, Leão na casa V,  quadraturas  de   Saturno  etc. Precisei  anotar  algo sobre  associação  de Marte com  Vênus  e fui  até a caixa  de papéis de rascunho. Alguma  conjuntura  astral me  favoreceu,  pois o verso do papel de rascunho trazia  um trecho de Morte e vida severina. É o momento em que nasce o filho  de Severino retirante. Mesmo que a criança tenha nascido em meio  a grande miséria, seu nascimento é saudado,  senão com alegria,  pelo menos com a consciência   de que toda  vida é para ser reverenciada. Cada manifestação de vida tem que ser respeitada e acolhida,  ainda que surja nos ambientes  mais hostis, dolorosos ou nada conVIDAtivos.









Mais uma vez a fórmula do acaso socorreu-me. O poema detonou  minha  preguiça e estimulou a vontade de escrever. Amo em João Cabral, sua grande habilidade de explorar  a palavra para extrair  dela o máximo de ritmo, sonoridade e sensação.  Sabendo que  toda a obra de João Cabral  é magistral,  tenho uma grande admiração  por Vida e morte Severina. A saga de Severino retirante tem muito da pureza e da força da terra condensadas em suas  palavras. Relato pungente de quanta dor  habita  o solo brasileiro, com sua gente abandonada   à própria   sorte.

               No papel de rascunho, a passagem  em que  os vizinhos falam  sobre a beleza  do  recém-nascido, que não sendo qualidade marcante  naquele  indivíduo, é inerente  ao que este  rebento nascido da dor e da fome,  significa para  a vida. Já vi montes  de imagens e comparações  expressando  a   beleza. Quase sempre  estas imagens usam  símbolos de grandiosidade, distinção ou  qualquer coisa que seja  primordialmente belo. Mas como falar da beleza que persiste na feiúra?  A situação não pedia imagens  grandiosas, pois não  se tratava de  uma beleza ostensiva.Só  mesmo  a sensibilidade  e a alma  para ver a beleza  se insinuando  através da estreita  abertura no corpo da miséria. Então pronto, caderno novo. A simplicidade e a novidade. Serviu como uma luva. Todo mundo já experimentou  isto.Quanta promessa! Letrinha  caprichada na primeira  página acreditando  que será assim até o final. Ainda que a  bagunça  já  comece  na terceira página,  a primeira é sempre um projeto, um momento de renovação, a partida. Desta vez tudo vai dar certo. Um novo curso, novo aprendizado, uma nova  casa,  obras na  velha casa,  novo  carro, novo amor. É qualquer  coisa  nova que um ou dois meses  após poderá  ter se perdido na confusão do cotidiano. Mas a  sensação da primeira página  é  realmente muito gostosa.
            Desde que li este poema pela primeira vez, há muitos anos atrás, esta imagem do caderno novo ficou praticamente carimbada na minha memória. Acho que gosto de cadernos.
            De uma coisa estou certa. O que eu não consegui expressar, os versos falarão por si:


"___De sua formosura
         deixai-me que diga:
         belo como a palmatória
         na caatinga sem saliva.
 ___De sua formosura
        deixai-me  que diga:
         é tão belo como um sim
         numa sala negativa.


___É tão belo como a soca
       que o canavial multiplica.
___Belo porque é uma porta
        abrindo-se em mais saídas
___Belo como a última onda
       que o fim do mar sempre  adia.
___É tão belo como as ondas
       em sua  adição  infinita.


___Belo porque tem do novo
       a surpresa e a alegria.
___Belo como a coisa nova
       na prateleira  até então vazia.
___Como qualquer coisa nova
       inaugurando o seu dia
___Ou como  o caderno novo
      quando a gente o principia.


___É belo porque com o novo
       todo o velho contagia.
___Belo porque corrompe
       com sangue novo a anemia.


Vida e morte severina (fragmento)
João cabral de Melo Neto

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