sábado, 7 de maio de 2011

Gostoso é ler Machado

                  Rua estreita. Gente, gente. Gente passando. Indo e vindo. Quase ouço o barulho dos pés pisando os paralelepípedos lustrosos que as pequenas  botinas,  (às vezes, vindas de Paris) das mulheres  tornam  a  lustrar  com seus  saltos saltitantes. Botinas  e  sapatos  mais  pesados  de  couro  de  boi  do  sertão  do Rio de  Janeiro,  ou  trabalhados   nas   oficinas  dos  sapateiros  europeus.  Neste caso,  devemos  pressupor   que  os  sapatos   tenham  ornamentos  e  polainas.
                  Transversa Uruguaiana  acolhe  as  saias,  babados,  rendas  que   passeiam  rente ao  chão. O cheiro  dos  morros  já  fazia  parte  dos  aromas  da  cidade. Cheiro  de cana,  café  e  suor  misturados  ao  silêncio  das pedras  e ao  murmúrio  do  mar.
                   Rio, cidade batizada  pelo  trânsito. O trânsito  do Rio nem  sempre é fluido. Porém, nos romances  de  Machado  de  Assis   tudo  flui. As  palavras,  as  frases,  os  períodos. Como um  rio profundo   evidentemente.  Profundidade  sem  covas  sombrias.  Leito   de  rio  perfeito, cabendo  em  si  suas  águas;  de  reflexão,  de  elegância. Rio  que flui prazerosamente  e  distribui  generosamente  seu  prazer.
                   Genialidade,  inteligência,  crítica,  precisão: inúmeros predicados. Material para  uma  biblioteca  de  crítica  literária. Sem dúvida,  se  alguém  quer  buscar  ou  crescer,  pode  treinar seus dons  de crítico  literário nos textos de Machado.  Eu vou como   leitora. Leitora de rede. Rede de árvore de sítio,  com  o  silêncio por ajuda. Contando também  com  os  barulhinhos  da  natureza. Prazer  de mergulhar,  de  esquecer  do  mundo  submersa   nas  páginas  de  Machado.  Saborear  cada palavra que  parece nascida  ali. Cada frase.  Ouvir  e  sentir  o  escrito. Tato  da alma,  audição  do coração. O  texto de Machado de Assis  homenageia  a  língua  portuguesa  porque  a  respeita e  a  ama.  Cuida  dela como se  cada  palavra  fosse  uma   pedra   preciosa no  conjunto  de uma jóia rara. É assim que  a  língua  também  acolhe  Machado,  como  o  amante ou  o  filho  mais  querido. Estes  dois  entes,  isso  sim  é que  é  o  melhor,  convidam quieta  e calorosamente  o  leitor  a   participar  de um mundo  especial,  desta  ceia  que  oferece  beleza,  elegância,  idéias,   metáforas,  estilo  e muito mais.  Infindo,  indefinido.
                    A porta está  aberta. Quem  quiser  pode  entrar.  Limpe  os  pés no capacho da porta. Faça silêncio. Cuidado  com  os  tapetes  internos  pois  eles são  simples,  mas  valiosos  na  moeda  sinceridade.  Sente-se ou  deite-se, pois  há  cadeiras  e  sofás. Prove,  saboreie,  viva.

fragmento do conto "Primas de Sapucaia!"
de Machado de Assis

"Ao  chegar  à porta de casa,  consultei o relógio, como se tivesse  alguma coisa que fazer; depois disse às primas  que subissem  e fossem  almoçando.  Corri  à Rua da Misericórdia. Fui primeiro até à  Escola  de Medicina; depois voltei  e vim  até à Câmara  dos Deputados, então mais  devagar,  esperando  vê-la  chegar  a cada curva da rua;  mas nem sombra. Era insensato, não era? Todavia,  ainda  subi outra vez  a  rua,  porque  adverti  que, a pé e  devagar,  mal teria tempo de ir em meio da praia de  Santa Luzia,  se  acaso  não parara  antes;  e aí fui, rua acima e praia   fora, até  ao convento  da Ajuda.  Não encontrei nada,  coisa nenhuma. Nem por isso  perdi as  esperanças;  arrepiei caminho  e vim, a  passo  lento  ou  apressado,  conforme  se  me   afigurava que  era   possível  apanhá-la  adiante, ou dar tempo  a que saísse  de  alguma parte. Desde que  a minha  imaginação  reproduzia  a dama,  todo eu sentia  um  abalo, como se realmente  tivesse  de vê-la  daí  a  alguns  minutos. Compreendi a emoção dos doidos."

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